Notre-Dame

Construída a partir do século XII, esta Catedral onde se coroaram os reis de França, era uma das joias da coroa da arquitetura gótica: colossal, famosa pelas suas intricadas fachadas, vitrais e estatuária, recheada de História e de simbolismo.

A estrutura da sua cobertura, em carvalho, ardeu na sequência de um ataque germânico em 1914, no contexto da Primeira Guerra Mundial. O chumbo utilizado para selar o telhado derreteu, ateando chamas por todo o seu interior. Os vitrais estilhaçaram-se, pilares e estatuária foram destruídos e, no decurso da Guerra, a estrutura continuou o seu sofrimento, incluindo dois bombardeamentos. Apenas as paredes restaram.

Falamos de Notre-Dame de Reims, que prossegue ainda hoje, digna, o seu caminho pela História da arquitetura da Europa.


Depois dos casos recentes do Museu Nacional do Brasil (uma perda terrível para a História de toda a América do Sul) e da destruição da Glasgow School of Art (um símbolo sem par da Arte Nova) as chamas atacaram agora a Catedral de Notre-Dame de Paris.

Notre-Dame é, mais do que uma joia patrimonial, um tesouro simbólico para a cultura francesa e europeia.

O tema da reconstrução é recorrente na História desta obra. Sobrevivente de guerras, revoluções, revoltas e incêndios, a sua construção iniciou-se em 1163 pela mão dos arquitetos Pierre de Montreal e Jean de Chelles, prosseguindo-se os trabalhos até 1345.

Luis XIV alterou-a, forçando elementos do Barroco. A Revolução Francesa também deixou as suas marcas.

Finalmente, em meados do século XIX, Eugène Viollet-le-Duc reconstrói o edifício tal como o conhecemos hoje a partir das suas ruínas, segundo uma fantasia romântica que alterou fortemente, em vários aspetos, a leitura original da peça gótica.


A agulha de Le-Duc era amada mas era, também, falsa. O edifício fundou-se no século XII mas o que ardeu era do século XIX. Era de ontem.


A premência da sua reconstrução é, naturalmente, inquestionável, mas a pergunta latente é: “reconstruir como”?

A resposta deveria ser simples: tal como era, repondo da forma o mais fiel possível o que se perdeu.

No entanto, tal como todos os edifícios cuja existência se prolonga no tempo, a Catedral de Notre-Dame de Paris não é exatamente imaculada.

Compreender o quê e como restaurar num edifício que foi sendo construído ao longo de seis séculos não é tarefa clara.

Até onde vamos na busca do verdadeiro monumento gótico? Ao falso-gótico de Le-Duc? À sua configuração anterior? A tal como era quando se concluiu a sua primeira fase? Ao projeto imaginário dos arquitetos originais? Porque não aproveitar e terminar a construção das duas torres, que nunca viram as suas agulhas concretizadas?

Agravando estas dúvidas, França já não tem 1300 carvalhos com a dimensão necessária para reproduzir a cobertura, nem os artesão para a executar.


A verdade é que Notre Dame não tem de voltar a ser o mesmo: nunca foi “o mesmo” e é difícil que o possa voltar a ser.

Mas um edifício nunca é apenas um edifício. O menos que Notre-Dame é é um edifício.


Pedro Dias, historiador de arte e antigo diretor da Torre do Tombo, defende que é preciso deixar a Catedral tal como estava: Notre-Dame é “o primeiro edifício gótico a ser construído” (imperdoável) e “marca a evolução de um dos principais estilos europeus”.

Confessou também que tem “imenso medo dos arquitetos porque normalmente têm sempre a mania de acrescentar património ao património”.


É difícil dizer que a Notre-Dame anterior ao incêndio era “Gótico”, sendo muito mais do que isso “património acrescentado” por Le-Duc em finais do século XIX.

Reduzir Notre-Dame a uma réplica nunca foi uma hipótese para Le-Duc, nem deve ser uma opção agora.


Quando Viollet-le-Duc tomou para si a reconstrução de Notre-Dame não pretendeu replicar o original mas sim reinventá-lo, com um novo desenho mais condicente com os seus ideais arquitetónicos. A sua agulha é algo que Le-Duc acreditava que os arquitetos originais desenhariam caso tivessem a tecnologia e a imaginação necessárias para o feito.

A agulha falsa de Le-Duc acrescentou algo novo a um dos mais amados edifícios parisienses e tornou-se amada ela mesma. Uma agulha “moderna” num edifício gótico.

Quando Le-Duc recuperou a cobertura de Notre-Dame recorreu a técnicas do século XIX que lhe permitiram criar uma estrutura capaz de, na sua opinião, refletir os ideais góticos com nova eficácia. Recusou repor a solução do século XII.

Colocando o restauro atual nas suas mãos, Le-Duc não hesitaria em construir uma nova cobertura e agulha: nunca faria uma réplica da estrutura histórica.

Assim como Le-Duc, com apenas 30 anos, acrescentou e melhorou a Catedral no século XIX, também o tempo de hoje deve contribuir com o próximo passo da História do edifício.

Isto não quer dizer que a essência da Catedral deva ser perdida, ou que novos elementos devam dominar sobre o edifício medieval: a intervenção deve ser serena, respeituosa e evolutiva.

Como o próprio Le-Duc anotou, “temos de admitir que estamos em solo escorregadio sempre que divergimos da reprodução literal”. Mesmo assim, seguindo o seu exemplo, a nova agulha e cobertura devem ter um olho no passado mas interpretado pelo presente; devem basear-se em princípios góticos mas pertencendo ao nosso tempo, respondendo às possibilidades e às premências de hoje.


Paris é uma cidade de património mas também de coragem arquitetónica.

A Torre Eiffel, por exemplo, concluída apenas 25 anos depois do restauro de Le-Duc de Notre-Dame, é tão amada pelos parisienses como as suas heranças patrimoniais. A pirâmide do Louvre ou o Centre Pompidou são outros exemplos do mesmo fenómeno.

Assim como Le-Duc, protomoderno e tecnófilo, foi capaz de estabelecer uma relação com o gótico medieval, também a arquitetura de hoje é capaz de humildade e dignidade, sem ter de subverter ou dominar Notre-Dame e os seus significados.

Notre-Dame não pode ser o edifício que era antes do incêndio (mesmo que a Catedral seja fielmente reconstruída, com materiais e técnicas próprios da época, continuarão a ser apenas réplicas), mas a nova recuperação pode ser um esforço colaborativo e coordenado muito mais delicado do que a intervenção de Le-Duc (fortemente transformadora mas que o tempo não deixou de validar).

É obrigação desta geração integrar o seu contributo discreto mas valorizador no contínuo histórico deste edifício complexo, impuro, mas imenso. …e o tempo também a validará.