Entrevista na Revista Spot de Dezembro.
À Conversa com o Arq.to Tiago do Vale
Tiago do Vale, recentemente galardoado pelo American Architecture Prize na edição de 2017, com o projeto “The Caveman” abriu o seu atelier em Braga, em 2008, no emblemático Chalé das Três Esquinas, intervenção que lhe valeu importantes prémios ao longo do anos, como o importante Building of the Year 2014, pelo ArchDaily.
A estética das suas obras destaca-se pela simplicidade e delicadeza que imprime em cada projeto. Tiago do Vale abriu-nos as portas do seu atelier e nós partimos à descoberta do mundo de um jovem arquiteto português que dá cartas em território nacional e além-fronteiras com uma obra de qualidade inquestionável…
Acabam de conquistar o American Architecture Prize 2017 com ‘The Caveman’, um dos vossos mais recentes projetos. Que sabor tem para a Tiago do Vale Arquitectos esta vitória?
Na verdade foi inesperado, porque é um tipo de projeto pouco convencional, com soluções ligeiramente radicais. Pensamos que estaria sempre um pouco fora do espetro da atenção deste júri, mas esta solução mais ‘fora da caixa’ foi valorizada e acabámos por vencer o prémio.
Tiveram como ponto de partida uma sapataria construída no final dos anos 90…
A sapataria era um espaço muito tradicional, próprio daquela época. Tinha tetos falsos em gesso cartonado, muito trabalhados, com focos de embutir que dão um tipo de luz sem hierarquia e que não valoriza o produto. O espaço possuía também um piso flutuante de madeira muito artificializado, quase branco, e papel de parede nas paredes. Tudo muito sem critério, sem uma linha condutora que unificasse todas essas opções. Por um lado, estávamos condicionados por um custo de obra muito reduzido mas por outro, também, queríamos provocar um efeito e produzir um desenho que resolvesse os problemas da loja e as especificidades da apresentação daqueles produtos de uma forma que fosse simultaneamente económica e de grande impacto. Limpámos a loja até ao seu estado mais bruto, retirámos esses acabamentos dos anos 90 e, depois, introduzimos o mínimo de elementos que pudessem resolver a exposição do produto e valorizar a loja, para criar um espaço que tivesse uma identidade forte e que fosse reproduzível noutros locais.
O que sentem quando olham para um projeto destes pela primeira vez?
Como sistematizamos tudo, a nossa abordagem é sempre muito pragmática e muito pouco emocional. Portanto, quando olhamos para um espaço como aquele estamos mais preocupados em encontrar os potenciais e as qualidades intrínsecas que ele tem, em vez nos ocuparmos a identificar e a valorizar coisas mais superficiais que acabam por não ter grande consequência para aquilo que vamos fazer.
No vosso portfólio encontramos intervenções muito variadas. Tão depressa nos cruzamos com uma intervenção num edifício histórico em Portugal, como uma obra no metro de Moscovo…
Eu acho que é uma opção racional da nossa parte. A especialização tem as suas vantagens, mas a minha visão sempre foi a de que a arquitetura é um exercício que precisa de ser abrangente. Não é um campo em que a especialização produza necessariamente melhores resultados. Dar resposta a problemas distintos é extremamente estimulante e o que aprendemos num campo informa os outros.
Possuem alguma marca pessoal que vos identifique? Quando alguém olha para um projeto sabe de imediato que é vosso?
Eu acho que a resposta é não (risos). Há sem dúvida uma vantagem comercial em ter uma imagem própria, identificável, em repetir certos tiques estilísticos. Quase todos os gabinetes de arquitetura têm uma imagem de marca própria, evidente na arquitetura que fazem, mas uma estratégia desse tipo obriga-nos a fazer uma coisa que tem consequências algo negativas para o exercício da arquitetura, que é abdicarmos de todo o leque de opções de imagem que a arquitetura pode ter. Se me privar de ter essa ferramenta, em nome do desempenho comercial como marca, estou provavelmente a diminuir o potencial de uma boa solução na arquitetura que faço. Portanto, prefiro oferecer-me toda a liberdade de expressão que a arquitetura permite e abdicar de uma imagem que se possa identificar como um fio condutor da nossa marca.
Há algum projeto que gostasse de vir a fazer?
Gostava muito de fazer uma escola de arquitetura. Passei muitos anos em escolas de arquitetura o que me permitiu recolher um manancial de coisas que gostava que acontecessem numa escola e que não acontecem nas que conheço.
No seu percurso escolheu fixar-se em Braga, mas acabou por atrair olhares do mundo até cá. Porquê essa opção?
Embora a minha vida adulta tenha começado em Coimbra, na altura da crise do mercado do imobiliário, em 2008, desapareceram as oportunidades na região centro. Tive algumas encomendas aqui no Norte, decidi persegui-las e fixar-me em Braga, que não só é perto das minhas origens, Ponte de Lima, mas é também uma cidade com dinamismo e uma economia forte. E aqui estou, nada arrependido.
Esta casa onde estamos foi uma dessas janelas para o mundo. Muito se falou sobre o Chalé das três esquinas, um projeto que acabou por se tornar o seu cartão de visita…
Este Chalé é um edifício que tem muitas peculiaridades, sobretudo no contexto de Braga. No final do século XIX um português regressado do Brasil com fortuna fez este palacete aqui ao lado. Estas três esquinas eram uma construção mais corrente, feita com o gosto que trouxe do Brasil, que servia de apoio ao palacete e era onde estavam a cozinha, a lavandaria, os arrumos e os aposentos dos empregados. Portanto, inesperadamente, apareceram aqui três casinhas de matriz corrente brasileira, compatibilizadas com o urbanismo português que, se calhar, não têm paralelo em mais lado nenhum, porque os portugueses que fizeram fortuna no Brasil não fizeram cá construção desta modéstia.
Havia portanto aqui um grande potencial latente, as casas tinham já uma personalidade muito única, embora diluída em 120 anos de maus tratos. A partir daí foi fácil tentar recuperar os elementos mais caraterizadores da casa e introduzir-lhes algumas transformações para a trazer para os dias de hoje. Acho que funcionou bem.
Como é que um arquiteto vive na sua casa? O seu olhar está sempre à procura de coisas que poderia mudar?
Sim e não. Por um lado há essa crítica permanente, mas por outro também há uma disponibilidade para algum experimentalismo que não seria possível se fosse a casa de um cliente meu. Portanto já se pressupõem os riscos dessas experiências e aceita-se a ideia de que as coisas podem não ficar 100% bem.
A reabilitação está em crescendo, as pessoas começam a estar atentas aos centros históricos, a reabilitar os edifícios. É importante esta atenção ao coração das cidades?
Acho que se conjugaram vários fatores em simultâneo. O primeiro é que começámos a perceber que as periferias não foram concebidas com a mesma qualidade que os centros históricos e que sofrem de imensos problemas urbanísticos. Esta espécie de periferia-dormitório também permitiu a criação do centro histórico monofuncional de serviços, deserto e desabitado, portanto umas patologias vão alimentando as outras. Esta noção de que os centros históricos tinham um valor potencial que não estava a ser aproveitado levou ao surgimento de uma série de programas de reabilitação e, pouco depois, com a crise de 2008, a construção de raiz parou e, portanto, a única fuga possível para a indústria da construção foi apostar, ainda mais, na reabilitação dos centros históricos. Estas coisas encadearam-se todas e é claro que há questões que se resolveram, outras que ficaram por resolver. As periferias estão cada vez mais degradadas, há também uma tensão especulativa que, a longo prazo, pode pôr em causa os centros históricos. Portanto a matriz é sempre a mesma, vamos mudando algumas coisas, transferindo os problemas de lugar, mas a reabilitação vai continuar a ter um papel fundamental na prática arquitetura, e veio para ficar.
Observa muitos erros arquitetónicos no seu dia a dia?
Claro que sim. Faz parte o olhar crítico também. Ver os erros dos outros e os nossos próprios erros. Se formos capazes de os identificar somos capazes de os evitar ou de os resolver, esse é o primeiro passo.
Qual é no seu entender a grande missão da arquitetura?
A arquitetura reúne saberes de áreas muito distintas, mas penso que a sua principal missão é dar a melhor resposta possível aos requisitos, problemas e necessidades de cada projeto específico, quer para o cliente, quer para quem vai interagir com a obra. Essa resposta é algo simultaneamente técnico, funcional e estético e com um grande impacto na qualidade de vida das pessoas. Compatibilizar todas estas dezenas ou centenas de questões e dar-lhes resposta com um único desenho é o grande desafio e obrigação da arquitetura.