Tivemos o gosto de colaborar com o Caderno Traço de Março, propondo um “Roteiro a Norte” de olhos pousados na arquitectura.
Os arquitectos precisam de viajar.
Viajar não favorece só arquitectos ou os que se interessam por arquitectura (viajar, sabemos, é uma fórmula de enriquecimento universal), mas a experiência de viagem tem sido uma ferramenta central para a prática da arquitectura desde os tempos medievos: um luxo que permite ao arquitecto testar e confrontar o seu entendimento prévio com outras experiências, dados de riqueza empírica e conhecimentos de facto.
Viajar transforma, dilata as pupilas.
Já no século XVII, Luís XIV de França patrocinava o Prix de Rome, que permitia aos melhores alunos da Académie Royale de Peinture et de Sculpture (através de um exigentissimo concurso) completar, durante 3 a 5 anos, o seu conhecimento e formação com a experiência das obras-primas da antiguidade e da renascença in situ. Em 1720 a Académie Royale d’Architecture integra o Prix de Rome, que sobreviverá até 1968.
Le Corbusier (Charles-Édouard Jeanneret-Gris), provavelmente a figura mais transformadora do universo da arquitectura no século XX, utilizou (com enorme intensidade durante os seus anos formativos) a viagem como um laboratório que lhe permitiu desenvolver as filosofias radicais que sustentariam, mais tarde, grande parte do modernismo. Álvaro Siza Vieira, Fernando Távora seguiram-lhe as pegadas.
As terras do Norte, ponto de onde Portugal foi arrancado, são terras de enorme significado histórico, cultural e paisagístico, também merecedoras de uma Grand Tour (de outra escala, de outro ritmo, mas enormemente enriquecedora).
Começando pela capital histórica de Trás-os-Montes, como quem entra em Portugal pela fronteira, Bragança é uma cidade de contrastes, entre o centro muralhado e as grandes avenidas de finais do século XIX. É inevitável uma visita ao Castelo e a todo o conjunto medieval que o rodeia, assim como ao Domus Municipalis (um raríssimo exemplar de arquitectura civil românica) junto à Igreja de Santa Maria.
Eduardo Souto Moura assinou o Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, uma peça muito interessante, simultaneamente afirmativa mas respeitadora da sua modesta envolvente.
À distância de uma pedrada, é obrigatória uma passagem pelo Parque Natural de Montesinho e as suas aldeias de xisto.
Descemos a A4 até Vila Real, na confluência dos rios Congo e Cabril. Com um centro histórico singular e pitoresco, as belezas naturais do seu território também não estão longe, com o Parque Natural do Alvão a poucos quilómetros de distância.
O Palácio de Mateus é incontornável, mas a cidade possui também um excelente património arquitectónico contemporâneo, muito marcado pela actividade dos Arquitectos Pioledo, dos anos 80 aos 2000. O Museu da Vila Velha e o Conservatório Regional de Música, do arquitecto António Belém Lima, são extremamente merecedores de visita.
Acompanhando a descida do Douro em direcção ao mar atravessamos uma das mais interessantes paisagens de Portugal. Os terrenos de vinha em socalcos e um Douro enérgico entre escarpas dialogam para produzir um património simultaneamente natural e construído sem paralelo.
Entre as quintas apalaçadas, as caves e as vinhas há, também, muitos exemplos de boa arquitectura contemporânea. Logo a sul de Vila Real, em Peso da Régua, encontramos a Adega da Quinta do Vallado, do arquitecto Francisco Vieira de Campos, uma presença tectónica integrada na paisagem que desenha não só infraestruturas de produção como também momentos de contemplação sobre o Douro Vinhateiro.
Em Marco de Canaveses encontramos a Igreja de Santa Maria do arquitecto Álvaro Siza Vieira. Uma obra poderosa, poética e pura, sintetizando tipologias genuinamente portuguesas, quer no edificado quer na relação com a envolvente, num objecto de excepção, vencedor dos Prémios FAD.
Inevitavelmente desaguamos no Porto, o coração da Região Norte. Entre o Douro e o Atlântico, a cidade não necessita de apresentação: as vistas a partir de Vila Nova de Gaia, a Torre dos Clérigos, a classificação pela UNESCO como Património da Humanidade, o Mercado do Bolhão, as francesinhas, a Sé, a Livraria Lello.
É também a casa da Faculdade de Arquitectura do Porto, concentrando a cidade muita da obra que tornou a “Escola do Porto” célebre pelo mundo fora.
Não podemos escapar a uma visita ao conjunto do Parque de Serralves, que incorpora a Casa de Serralves, uma belíssima peça Art Déco pela mão do arquitecto Marques da Silva, nome gigante da arquitectura Portuense do século XIX e XX, o Jardim da Casa de Serralves pelo arquitecto Jacques Gréber e, claro, o Museu de Arte Contemporânea de Serralves da autoria de Álvaro Siza Vieira.
Menos óbvia será a visita ao Lavadouro e Balneário de São Nicolau, na Rua da Reboleira. Embora fora das rotas mais correntes, é uma intervenção notável do arquitecto Paulo Providência, dialogando arquitectónica e escultoricamente com a memória e a poética do lugar de forma absolutamente contemporânea.
Na Avenida da Boavista aterrou o mais recente ícone arquitectónico Portuense: a Casa da Música do arquitecto Rem Koolhas. Com um enorme poder transformador da imagem da cidade e uma sala com propriedades acústicas ímpares, merece uma visita.
Em Matosinhos, a Casa de Chá e Restaurante Boa Nova, do arquitecto Álvaro Siza Vieira, pede um momento mais prolongado, de contemplação da paisagem mas também do detalhe da obra, desenhada na juventude do arquitecto, integrado no gabinete do seu mestre Fernando Távora. Da mesma forma, a curta distância, aparece a Piscina de Marés, em Leça da Palmeira. Executada alguns anos mais tarde, a integração entre obra e natureza é levada ao extremo, diluindo-se a fronteira entre ambas.
Subindo a A3 chegamos a Braga, cidade episcopal, histórica, celta e romana. Vale a pena a visita à Sé e ao seu Tesouro-Museu, às Termas Romanas na Cividade e, saindo um pouco da cidade, à Capela de São Frutuoso de Montélios, em Real: um exemplar único de arquitectura pré-românica de matriz suevo-visigótica.
Não muito longe, o Estádio Municipal de Braga do arquitecto Eduardo Souto Moura é um objecto arquitectónico notável, com uma tipologia pouco convencional, encaixado numa antiga pedreira.
A caminho do Gerês, em Santa Maria do Douro, outra intervenção do mesmo arquitecto na Pousada de Santa Maria do Bouro, numa reabilitação que mantém, romanticamente, a ideia da ruína como dispositivo narrativo caracterizador da obra.
Continuando em direcção a norte pela A3, o arquitecto Eduardo Souto Moura presenteia-nos também com um conjunto muito interessante duas Habitações no Campo de Golf em Ponte de Lima, uma vila encantadora caracterizada pela sua longa Ponte Românica, rodeada de casas solarengas sobre o verde e bucólico Vale do Lima: uma visita obrigatória, especialmente no Outono.
Prosseguindo pela A27 terminamos a nossa rota em Viana do Castelo, na foz do Rio Lima, sob o olhar do Santuário de Santa Luzia. Com um centro histórico qualificado, importa visitar a Igreja Matriz e os antigos Paços do Concelho, ambos de matriz gótica, e a Casa da Misericórdia (renascentista, com um fantástico espólio de arte sacra).
Viana do Castelo tem recebido nos últimos anos vários exemplos de arquitectura contemporânea de qualidade que vale a pena conhecer, nomeadamente a Biblioteca Municipal de Álvaro Siza Vieira, enquadrada no Plano da Marginal de Viana do Castelo e constituída por um elegante volume suspenso, monolítico e enigmático, com grandes vãos rasgados para o rio.
A requalificação da Praça da Liberdade também é digna de relevo, desenhada pelo saudoso mestre Fernando Távora (que também concebeu o Plano da Marginal), enquadrando o remate da Avenida dos Combatentes da Grande Guerra com o estuário do Lima.
Muito fica, como sempre, por explorar: exercícios desta natureza deixam frequentemente algo por saciar, e o património arquitectónico de qualidade, no Norte, felizmente, não tem fim.
Ficarão para outro roteiro as zonas de Aveiro (com um parque de obras fantástico no seu Campus Universitário) e de Viseu (com o magnífico Museu Grão Vasco e a Pousada de Viseu), ambas fazendo a transição para a Região Centro.
…Mas, como dizia Santiago de Molina, “a viagem é o encontrar de algo que procuramos, sem sabermos exactamente o que é”, e aquilo que nos dilata as pupilas não tem necessariamente de estar longe do ponto de partida.